Como transformar o “caveirão” em uma clínica veterinária

 

Entre 2006 e 2014, as oficinas de Arte sobre Azulejos foram integradas ao Programa Criança Petrobras, na Maré. Ao final de cada ano, os paineis criados pelos alunos foram permanentemente instalados nos muros do bairro, onde ainda permanecem.

 
 

Esse primeiro painel é muito simbólico, pois evidencia a capacidade, a inteligência e a inventividade das crianças frente a uma realidade de extrema violência.

Para nós, educadores, essa e outras experiências que tivemos nesse primeiro ano na Maré, com todas as turmas que trabalhamos, re-direcionou a nossa metodologia de trabalho e também a nossa vida.

Além da qualidade do conteúdo, o respeito e o amor, fundamentais em nosso ofício, aprendemos sobretudo a ouvir.

Durante todo aquele ano o caveirão foi sendo continuamente transformado. 
E nós também.

 

As primeiras oficinas de Arte sobre Azulejo, resultado da parceria entre a Azulejaria e a Redes da Maré, tiveram início em 2006 nas comunidades de Nova Holanda e Morro do Timbau.

No primeiro encontro com a primeira turma da Nova Holanda, composta por alunos entre 8 e 9 anos, o assunto recorrente eram as incursões do “caveirão” - como é chamado o veículo blindado usado pelo batalhão de operações especiais da Polícia Militar do Estado do Rio, o BOPE, nas favelas. Durante as primeiras semanas, não havia um desenho ou uma história em que o caveirão não estivesse presente. Às vezes, o blindado entrava tocando uma música que não saia da cabeça das crianças. Outras vezes paravam as crianças, oferecendo um pintinho em troca de informações sobre bandidos.

O caveirão era o pesadelo, mas o pesadelo era real.

Passados os primeiros meses entendemos que aprendíamos mais do que ensinávamos.

A oficina tornava-se um local onde as crianças sentiam-se seguras para expressar o medo e também os desejos e as alegrias. Construía-se aí uma análise crítica do território, visível nos desenhos e no desenrolar das atividades em sala de aula.

Um dia, a partir de um exercício sobre as profissões, o Davi desenhava o caveirão. Há algum tempo o caveirão havia deixado de aparecer nos desenhos - e na comunidade. Estranhamos. Olhamos de novo, e o Davi havia transformado o caveirão em uma clínica veterinária móvel, que recolheria todos os bichinhos que viviam nas ruas da Maré.

Lembramos então de uma história que foi inventada pelas crianças na primeira semana de aula. De acordo com o desfecho original, na saída de uma festa, o caveirão chegaria atirando em todos, e ponto final. Ao pintar os desenhos do papel para os azulejos, na nova versão da história o caveirão foi transformado em uma clínica veterinária. 

 

Davi, de amarelo, sentado à direita.

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